Entrevista com Maria Teresa Mantoan
Realizada em: 18/2/2010
Atuação: Pedagoga, mestre e doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp, Professora Assistente Doutor MS-3 da Unicamp. Dedica-se, nas áreas de pesquisa, docência e extensão, ao direito incondicional de todos os alunos à educação escolar de nível básico e superior de ensino.
Obras: MANTOAN, M. T. Escola das diferenças. Carta Fundamental, v. 11, p. 20-21, 2009; MANTOAN, M. T. (org.). O desafio das diferenças nas escolas. Petrópolis / RJ: Vozes, 2008; MANTOAN, M. T.; PRIETO, Rosângela Gavioli. Inclusão escolar: pontos e contrapontos. São Paulo: Summus, 2006; MANTOAN, M. T. Inclusão escolar: O que é? Por quê? Como fazer?. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006; MANTOAN, M. T.; BATISTA, Cristina Abranches. Educação Inclusiva: Atendimento educacional especializado para deficiência mental. Brasília: MEC/SEE, 2005.
Escola de atenção às diferenças
Salto – Maria Teresa Mantoan, convidada do Salto para o Futuro, é professora da UNICAMP e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Ensino e Diferenças. Como o tema da inclusão das pessoas com deficiência passou a fazer parte da sua vida?
Maria Teresa Mantoan – De uma maneira muito inusitada. Eu estava num congresso em Portugal, conheci uma sala de aula, frequentada por meninos que não tinham nem braços nem pernas, e que estavam muito bem integrados numa sala. E como eles dançaram para mim no final da aula, eu assisti a uma cena incomum e que me marcou muito, que foi um colega amarrar uma criança no próprio corpo, para que ela pudesse dançar com as pernas e os braços do seu amigo. E a partir daí as coisas mudaram.
Salto – Isso faz, mais ou menos, 22 anos?
Maria Teresa Mantoan – Mais ou menos 22 anos.
Salto – Professora, como a senhora analisa a forma como a legislação brasileira trata a questão da inclusão das crianças e adolescentes com deficiência? Por exemplo, uma escola pode recusar a matrícula de um aluno com algum tipo de deficiência?
Maria Teresa Mantoan – Não, de forma alguma. Isso por causa da nossa Constituição de 1988, que garante o direito à educação a todas as crianças, indiscriminadamente. E também por uma série de documentos legais que foram acontecendo após 1988. O Brasil é signatário de vários deles, e ultimamente da convenção da ONU, que também assegura esse direito a todas as crianças. Agora, o Brasil se adiantou muito em relação à inclusão, seja em relação a outros países, como também aqui dentro, em relação ao ensino regular. Isso é muito importante, porque o sentido da educação especial muda, e todas as questões estruturais e culturais da escola, aos poucos, vão ter que se ajustar a esse novo sentido da educação especial, pela própria política nacional de educação especial, que é recente, de 2008, e que passou a ser complementar à formação do aluno, e não mais substitutiva da educação comum para alunos com deficiência.
Salto – Esse é um ponto que parece fundamental, que é a questão dos papéis. Até onde vai o papel da educação especial, e onde começa o papel do ensino regular? A senhora já disse que a educação especial tem adquirido um caráter complementar, como podemos entender melhor essa questão?
Maria Teresa Mantoan – O papel da escola comum é a escolarização de todas as crianças. E o papel da educação especial, hoje, não é mais substituir essa escola para alguns alunos, mas complementar, como você disse, a formação desses alunos. Então são papéis muito diferentes. A educação especial não assume mais a escolarização de pessoas com deficiência, com transtornos globais de desenvolvimento, altas habilidades etc. A escolarização, a escola formal, é atribuição da escola comum, do ensino regular.
Salto – E esse papel da educação especial, essa complementação de que falamos até aqui, ela se dá no que diz respeito ao que é mais específico para essa criança, para esse adolescente?
Maria Teresa Mantoan – Exatamente. Por exemplo, uma criança que é cega. Ela vai aprender na educação especial o que ela precisa em função da cegueira, ou da baixa visão, ou de qualquer deficiência visual, o que ela precisa para que ela possa ter assegurada a inclusão, em termos de acesso, participação, na escola regular, junto com os seus colegas.
Salto – E o que as famílias precisam saber para poder matricular seus filhos com deficiência nas escolas regulares?
Maria Teresa Mantoan – As famílias precisam estar atentas a todas essas transformações, a todas essas mudanças, legais, estruturais, que estão fazendo com que a educação especial tenha um outro sentido. As famílias precisam saber, acima de tudo, que seus filhos, apesar dos problemas que possam ter, mais graves ou não, eles têm problemas que não fogem às diferenças humanas. Todos somos diferentes. Eles têm uma diferença entre as tantas diferenças que existem. Não podem ser marcados por elas, porque são diferenças que nos igualam.
Salto – A senhora falou sobre os avanços brasileiros, no que diz respeito à inclusão das crianças com deficiência. Esses avanços são de que natureza, do ponto de vista das políticas públicas e de um modo geral?
Maria Teresa Mantoan – Bom, com relação às políticas públicas não há dúvidas quanto aos avanços. E agora, também em relação à formação de professores. A formação de professores para educação especial é importantíssima, porque os professores que trabalham na educação especial precisam aprender a dar conta, especialmente, do atendimento educacional especializado, que é o serviço novo. O atendimento educacional especializado tem a ver com uma ação muito importante da educação especial, que é justamente apoiar esse aluno nas suas necessidades, para que ele possa ter uma participação nas turmas regulares, e ser autônomo, independente, na medida das suas possibilidades. Então, essa formação está sendo garantida, atualmente, pelo governo, através de cursos na modalidade a distância. Nós mesmos, através da Universidade Federal do Ceará, estamos oferecendo um curso para 3.150 professores. Outras universidades que fazem parte dessa rede de universidades para a formação em educação especial estão oferecendo outros cursos. Então, esse professor sendo formado, e o governo oferecendo às escolas equipamentos, ajuda técnica e financeira para que a educação especial possa acontecer, isso faz com que a educação especial se adiante, e possa de fato constituir um desafio às escolas regulares, que precisam se espelhar em todas essas modificações, para pensar numa escola das diferenças e esquecer essa escola dos diferentes que nós sempre tivemos.
Salto – A senhora falou da importância da formação dos professores da educação especial. Mas, quando pensamos na formação dos professores da escola regular, há uma certa polêmica. Alguns especialistas dizem que o professor precisa se preparar para o trabalho voltado para a inclusão, e outros dizem que não. Como a senhora analisa? E qual a sua opinião a esse respeito?
Maria Teresa Mantoan – Formação sempre é muito importante, a formação continuada, para todos nós. Mas o que os professores da escola regular precisam conhecer bem é um ensino para as diferenças. E não um ensino específico de uma deficiência, para um aluno com uma determinada dificuldade. Porque, quando aprendemos a ensinar para as pessoas como elas realmente são, nas suas diferenças, temos a capacidade de trabalhar com as pessoas de um modo muito mais aberto, heterogêneo, plural, rico em contribuições, do que quando buscamos a homogeneidade, a igualdade das respostas. A escola de hoje iguala mais do que estabelece a importância das diferenças. Os professores do ensino regular devem fazer uma revisão em suas práticas de ensino, em termos da sua abertura para as diferenças humanas. E não uma formação continuada voltada para ensinar a lidar com determinados tipos de deficiência. Isso não existe. Na escola inclusiva as pessoas aprendem segundo as suas possibilidades, segundo as suas capacidades, de acordo com o que prevê a Constituição.
Salto – De acordo com o que a senhora diz, aquela ideia de que para haver inclusão é preciso ter um aluno com deficiência na sala de aula, ou na escola, é uma ideia equivocada.
Maria Teresa Mantoan – Muito equivocada, como tudo o que vem em função disso. Porque eu tenho um aluno com deficiência na sala, eu tenho um currículo especial para ele, eu tenho uma avaliação especial para ele, eu tenho atividades facilitadas para ele. Não. Essa é uma interpretação, como você diz muito bem, equivocada, de uma escola para todos. Porque, se uma escola é para todos, ela é uma escola com diferenças.
Salto – Vamos falar do panorama brasileiro, no que diz respeito à inclusão. A senhora já citou avanços do ponto de vista das políticas públicas, da formação, e metodológicos também. Como a senhora analisa esse panorama da inclusão no Brasil?
Maria Teresa Mantoan – Eu vejo que a sociedade civil também tem avançado. E isso em decorrência de uma divulgação muito grande do que é inclusão. Inicialmente, a inclusão foi divulgada, mas de uma maneira um tanto ou quanto fragmentada. Havia mal-entendidos, etc. Agora, a partir da força dessas politicas, e do fato de tudo estar se encaminhando para uma melhor compreensão do que é inclusão, nós vamos ter dentro das escolas um atendimento cada vez melhor para as crianças, seja no ensino regular, seja no ensino especial. De 8 anos para cá tudo se intensificou muito, não só em termos de política, mas em termos de mudança estrutural na educação especial, marcadamente. Porque ela é que está puxando de fato para uma visão diferente de escola para todos as escolas brasileiras, para o sistema educacional brasileiro. Há também um outro ponto, que deve influir muito daqui para diante, que é a contribuição dos pais. Pais bem informados, pais que estão já percebendo, pelo tempo que seus filhos estão incluídos, as vantagens que eles adquirem em ambientes que não são restritivos, mas desafiadores à capacidade deles...
Salto – E é necessário partir do princípio de que estar nesses ambientes é um direito dessas crianças.
Maria Teresa Mantoan – Este é um direito delas. Então, nós vamos evoluir muito nesse sentido. É uma compreensão maior, da opinião pública em geral, e também de um entendimento desses pais, de que a escola está fazendo mais do que a sua obrigação, e que eles devem estar juntos com a escola, garantindo a inclusão dos seus filhos.
Salto – E como é que os sistemas têm se empenhado em colocar em prática o que estabelece a legislação? Como é que as redes têm se organizado?
Maria Teresa Mantoan – De uns anos para cá, busca-se entender melhor todas as transformações, e colaborar. É lógico que o sistema público vai mais rápido. As escolas particulares já têm, assim, essa ideia da escola dos diferentes. Diferentes porque os alunos que têm uma condição especial para aprender são valorados positivamente, etc. Mas elas também terão que admitir, porque essas escolas são autônomas, mas não são independentes. Elas fazem parte do sistema de ensino brasileiro. E, aos poucos, já estão assimilando todas essas inovações e já estão dando mais contribuições ao movimento inclusivo. As universidades, com a formação continuada, terão que evoluir na formação dos professores para o ensino regular, e na formação para a educação especial, que hoje é uma especialização da pedagogia, dos cursos de pedagogia. Não é mais uma habilitação, está no nível de pós-graduação lato sensu. E acredito que todo esse movimento vai levando não só para uma visão de escola de inclusão, de uma escola para todos muito mais amadurecida, como também de inovações que são próprias do nosso caráter de entender melhor as diferenças, e a partir daí fazem com que todo o sistema se reelabore. Veja, por exemplo, até o ensino superior, quanto ele já cresceu em termos de possibilidades para todos cursarem. O próprio ENEM está sendo utilizado pelos vestibulares. Tudo isso faz parte desse movimento geral, e nós temos muito a crescer ainda. Mas temos que ir no andar da carruagem. Não podemos precipitar e, ao mesmo tempo, temos que ser muito, muito duros – como eu sempre fui – quer dizer, muito firmes, em relação a todos esses princípios, para que as pessoas não resvalem, porque é muito fácil resvalar, começar a perceber as coisas de uma maneira que mascare o sentido de uma escola para todos.
Salto – E ainda pensando no papel do sistema, como garantir a inclusão, essa escola para todos? A quem cabe a fiscalização? A quem cabe verificar se as redes estão de fato cumprindo o que a legislação determina?
Maria Teresa Mantoan – É sempre a sociedade civil que tem que estar atenta ao poder público, atenta a tudo que está acontecendo verdadeiramente, seja nas escolas, seja na vida em geral. E eu creio muito também em iniciativas como essa, em que são entrevistadas pessoas que podem levar, através das mais diferentes mídias, o que está acontecendo no Brasil, para saber onde a gente pode melhorar mais. Tudo isso compõe um quadro que, neste momento, tem sido um quadro muito favorável para que as pessoas possam ir, aos poucos, passando daquela fase de resistência, de desentendimentos, para uma fase de apoio à inclusão. Eu espero que, no próximo governo, com todas essas transformações que teremos a partir do ano que vem, tudo isso seja mais forte, para que haja continuidade. Porque o que falta muito para as políticas públicas é a continuidade.
Salto – Quando falamos em políticas públicas, temos um marco recente no que diz respeito à construção dessa escola, desse ideal de escola para todos, escola de atenção às diferenças, que é a criação do atendimento educacional especializado.
Maria Teresa Mantoan – Sem dúvida.
Salto – No entanto, algumas redes já se mobilizam para dizer que não têm condição de garantir esse atendimento, enfim, outras questões aparecem. Como garantir esse atendimento?
Maria Teresa Mantoan – Eu acho que o Governo Federal tem feito a sua parte. E o Estado e o Município têm também que se mobilizar no sentido de oferecer às escolas o que elas necessitam. Formação de professores, equipamentos, salas de aula que tenham condições de fazer acontecer esse serviço. Não podemos esperar que as coisas venham todas de cima e prontas. Tem todo um trabalho de construção, e acredito que todo o esquema legal que nós temos possa garantir que haja essa mobilização geral no Brasil. É preciso que as pessoas colaboram, os governos colaborem, e que estejam afinados com a proposta da política nacional de educação especial, que consigam se alinhar com relação a todos esses novos caminhos, que o MEC, de certa maneira, desbravou, para que agora possa continuar a ser desbravado, ser aberto em condições ainda mais favoráveis, porque, conforme vai passando o tempo, as coisas vão melhorando sempre, principalmente se houver a boa vontade de todos... É preciso muita boa vontade.
Salto – A política nacional de educação especial e o atendimento educacional especializado são marcos recentes nessa trajetória. O que eles representam na trajetória de construção dessa escola de atenção às diferenças?
Maria Teresa Mantoan – Esses últimos marcos e todo o nosso trabalho, que iniciamos há tanto tempo – os meus alunos do laboratório, tudo isso – incrementaram muito as pesquisas, mudaram a direção das pesquisas, fizeram com que, por exemplo, as pessoas começassem a perceber a importância da educação especial. Porque a educação especial como substitutiva foi se descaracterizando de um tal modo, que não havia muito sentido em pesquisar mais nessa área. E, agora, nós temos a possibilidade de também abrir um campo novo na área da pesquisa, e os meus alunos têm procurado muito isso. E mesmo na formação, atualmente, nós estamos iniciando uma pesquisa para a formação de redes sociais de formação continuada de professores do AEE. E outra coisa, o trabalho começou a se integrar com outras áreas do conhecimento. No meu caso, principalmente com o estudo de computação. Porque todas essas inovações passam pelas novas tecnologias. Então, isso é muito importante para nós todos. E na UNICAMP, principalmente no que se refere à questão da sensibilidade, quanta coisa nova surgiu, e quanto material para pesquisa... Nós tivemos alunos que se dedicaram durante 4 anos, com bolsa da Capes, inclusive, para conhecer melhor os problemas de acesso ao Ensino Superior. E eu espero ter gás para continuar isso tudo, porque acho que o melhor da festa está começando. E nós já passamos por grandes pressões, incompreensões (...) e continuo achando que a educação especial como substitutiva é um meio de segregação, e uma forma de discriminar pessoas, que desvirtua o sentido da escola comum, que é de formar todo mundo. Mas agora, essa nova fase da educação especial, que tem novas atribuições, e com o atendimento educacional especializado, o laboratório também deve começar com alguns trabalhos, voltados novamente para a educação especial.
Salto – Gostaria que a senhora desse um recado para os professores que estão nos assistindo agora, que não necessariamente passaram por um processo de formação, para lidar com crianças com algum tipo de deficiência, mas que estão vivenciando, na prática , no dia a dia, esse processo de inclusão. O que a senhora teria a dizer a esses professores?
Maria Teresa Mantoan – Eu ando afirmando muito, atualmente, que a questão é que nós, professores, estamos muito habituados em estabelecer uma escola dos diferentes, porque são bons alunos, e a escola dos diferentes porque são alunos especiais. Então, há escolas especiais e escolas “normais”. Nós estamos acostumados a todo um conjunto de práticas, de métodos, que nos dão sempre a possibilidade de opor aquele que aprende àquele que não aprende, aquele que é "normal" àquele que não é. Agora é um novo tempo. Nós não estamos mais trabalhando nas pontas, estamos trabalhando no meio, com a diferença na sua multiplicidade. E é isso, que eu, como professora, faz 48 anos que leciono, gostaria de passar para vocês: o encanto, essa perspectiva nova de se entender os nossos alunos como seres tão diferentes, mas impossíveis de serem contidos em uma categorização, em uma classificação. E essa nossa mania de classificar, nossa tendência a formar grupinhos, a formar escolas, a formar sistemas, especializações, etc., é que nós dá muita dificuldade em entender a inclusão. E a inclusão é uma coisa muito natural.
Fonte: TV Brasil, um canal da EBC - Empresa Brasil de Comunicação - http://www.tvbrasil.org.br/saltoparaofuturo/entrevista.asp?cod_Entrevista=76
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