segunda-feira, 22 de março de 2010

A geração de "nativos digitais" é um mito

“A geração de ‘nativos digitais’ é um mito”


Para a educadora australiana, é uma ilusão acreditar que os mais jovens têm intimidade inata com as novas tecnologias – e pensar assim pode prejudicar a educação

Alexandre Mansur
A geração nascida e criada na internet, a partir dos anos 80, é vista com interesse no mundo. São os chamados nativos digitais. Vários especialistas vêm afirmando que esses jovens, por seu convívio precoce com a tecnologia, têm poderes especiais, como capacidade criativa, jeito para aprender o novo e tolerância para realizar várias tarefas simultâneas. Como nossas escolas se adaptarão a eles? E como eles competirão no mercado de trabalho? Diante dessas questões, a educadora australiana Sue Bennett dá uma resposta surpreendente. Para ela, os nativos digitais não existem. Não passam de um estereótipo inútil.

ENTREVISTA - SUE BENNETT

QUEM É
É diretora do Centro de Tecnologia em Educação da Universidade de Wollongong, na Austrália
O QUE FAZ
É uma das principais vozes céticas sobre o uso de novas tecnologias na educação. Já trabalhou nas universidades de Canberra, Central Queensland e Nacional da Austrália
 
ÉPOCA – Os nativos digitais – jovens nascidos depois de 1980 – são realmente diferentes?
Sue Bennett – A questão é que deve haver alguma diferença entre as gerações. Mas não é nada tão expressivo quanto tem sido dito por alguns especialistas ou em artigos publicados na mídia. Além disso, nessa geração, existe uma variabilidade muito grande no contato com as tecnologias. As diferenças dentro dessa geração são tão grandes quanto o que os distinguiria da geração dos mais velhos.
ÉPOCA – Faz sentido falar de uma geração de nativos digitais, então?
Bennett – Não acredito que esse rótulo tenha muita utilidade. Por que falar de um grupo específico da nova geração, com características semelhantes a outras pessoas de outra faixa etária? Cria a impressão de que todos os jovens têm uma intimidade inata com as tecnologias digitais. O que não é necessariamente verdade. Estudos recentes entre universitários australianos mostram que só 21% deles mantêm um blog e 24% usam redes sociais. Embora muitos usem uma vasta gama de tecnologias em sua rotina, existem claramente áreas em que a familiaridade com as ferramentas tecnológicas não é nada universal. Um estudo feito nos Estados Unidos com 4.374 estudantes de 13 instituições mostrou que a maioria tinha computadores pessoais e celulares. Mas só 12% deles tinham computadores de bolso. E uma minoria, cerca de 20%, já tinha criado conteúdo próprio para a internet.
ÉPOCA – De onde saiu essa expressão?
Bennett – Às vezes, observamos uma atividade, e aquilo parece muito novo para nós. E não reconhecemos que não passa de uma extensão de um comportamento prévio. Sem muita análise aprofundada naquele momento. Além disso, algumas pessoas ganharam fama ao defender esse tipo de ideia. E isso as incentivou a alimentar esse mito. É algo que soa bem. Vem de acordo com nosso senso comum, embora ninguém tenha investigado de verdade.
ÉPOCA – Algumas pessoas propõem mudanças na educação para atender às necessidades dos nativos digitais. O que a senhora acha?
Bennett – Isso é um grande perigo. Se mudarmos as práticas nas escolas para incorporar essas tecnologias e atender os chamados nativos digitais, poderemos deixar a educação inacessível para a maioria dos jovens, que não está tão integrada ao mundo digital. Poderá agravar a situação dos estudantes deixados para trás. Nós ainda não sabemos exatamente se a tecnologia realmente melhora o desempenho dos alunos. Os estudos feitos até hoje mostram que os estudantes gostam dos computadores nas salas. Mas não está bem definido se eles melhoram o resultado. Na Austrália, o governo forneceu laptops a todos os estudantes no meio da high school (equivalente ao ensino médio), de 15 e 16 anos. Eles levam os computadores para casa.
ÉPOCA – Por outro lado, como a lição que o professor dá no quadro-negro pode ser atraente para estudantes criados com o Facebook ou o Nintendo DS?
Bennett – Não podemos perder de vista o que queremos com a educação, embora, claro, o engajamento seja importante. Também não podemos ter uma imagem estereotipada do professor. A maioria deles consegue envolver os estudantes em atividades estimulantes usando os equipamentos tradicionais da escola. Independentemente da tecnologia, deveríamos investir em ajudar os professores a tornar o ensino mais interativo e provocante.
ÉPOCA – E no mundo profissional? A geração que nasceu com a internet tem mais habilidades do que os mais velhos?
Bennett – Aí certamente temos uma geração que é mais confiante no uso da tecnologia, que está mais disposta a aprender na base da tentativa e do erro. E isso faz diferença em um mundo onde as tarefas profissionais usam cada vez mais computadores e ferramentas que buscamos na internet e precisamos aprender a usar rapidamente. Por outro lado, embora eles entendam muito de computador, continuam sendo menos experientes em outras habilidades exigidas em cada profissão.
ÉPOCA – Os profissionais mais velhos podem se manter atualizados com as novas tecnologias, assim como os jovens?
Bennett – De novo, estamos muito presos aos estereótipos. Quando pensamos no choque de gerações no trabalho, imaginamos homens de 60 anos comparados a jovens na faixa dos 20. Mas a maior parte das pessoas está nas idades intermediárias. Existem pessoas mais velhas que têm capacidade para aprender qualquer coisa. E também têm mais tempo e mais dinheiro para se dedicar a isso do que os jovens. O que acontece com frequência com esses profissionais mais velhos é que eles têm outras prioridades às quais dedicar sua energia. Enquanto você tiver saúde, conexão com o mundo e envolvimento com outras pessoas, terá meios para se atualizar com a tecnologia, sem limite de idade. Se estiver aposentado, até melhor, porque terá mais tempo para se dedicar a isso.
ÉPOCA – Faz sentido imaginar que essa nova geração é mais capaz de executar várias tarefas ao mesmo tempo?
Bennett – Quando se fala em realizar várias coisas ao mesmo tempo, na verdade o que acontece é que ficamos pulando de uma tarefa para outra, com várias interrupções. Não estamos fazendo nada simultaneamente. Às vezes, é benéfico. Mas muitas vezes piora o resultado final. Por exemplo, quando você estuda algo, já está provado que consegue reter e compreender melhor aquilo se estiver bem focado.
"Enquanto você tiver saúde e envolvimento com outras pessoas, poderá se atualizar com a tecnologia sem limite de idade "
ÉPOCA – Alguns estudos mostram que os alunos têm menos visão crítica quando selecionam referências na internet. Como resolver isso?
Bennett – Primeiro, é importante saber que isso acontece. Depois, ser ativo e discutir com os alunos a importância de entender o contexto das informações e de procurar discernir o que são dados mais ou menos confiáveis. Mostrar que não dá para acreditar no primeiro link que o Google lhe dá. Em vários estudos com alunos da high school, se aquela tarefa não é muito importante para eles, ficam satisfeitos com informações colhidas rapidamente na internet, mesmo desconfiando que não sejam as mais confiáveis. Por outro lado, se é um trabalho mais decisivo para eles, então tomam mais cuidado na pesquisa. De certa forma, nós também fazemos isso sem a internet. Quando pesquiso em bibliotecas, posso pegar o primeiro livro que encontrar sobre um assunto ou tentar investigar mais, dependendo da circunstância. Essa capacidade para pesar quanto esforço você dedica a cada tarefa não é novidade da era digital. Há estudos que mostram como isso acontece há muito tempo com os estudantes. É da natureza humana.
ÉPOCA – Os campeões de digitação em teclado de celular têm todos menos de 15 anos. Essas habilidades farão diferença quando forem maiores?

Bennett – Lembra-se do cubo mágico dos anos 80? Alguns adolescentes montavam o cubo com rapidez incrível. Parecia que tinham habilidades mentais superiores e fariam diferença na sociedade. Acontece que eles simplesmente tinham mais tempo e interesse para praticar.
ÉPOCA – E as habilidades desenvolvidas pelos jovens nos games serão úteis na vida adulta?
Bennett – É uma suposição que não foi devidamente testada. Não sabemos se essas habilidades continuam eficientes em outro contexto.
ÉPOCA – A senhora, que nasceu antes da era da internet, acha que tem menos habilidade com tecnologia do que seus alunos?
Bennett – Eles têm muito mais acesso à tecnologia do que eu tive quando tinha aquela idade. Por outro lado, eu estaria perdida sem meu laptop. Escolho o tipo de tecnologia de que preciso em cada momento. Não é uma questão etária. Algumas pessoas de minha idade têm tanta intimidade com tecnologia quanto meus estudantes de 18 anos.
ÉPOCA – A senhora gostaria de ter algum conhecimento tecnológico que seus alunos têm?
Bennett – Espero que não.

Fonte: Revista Época - 18/03/2010

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